Pasolini ao longo dos anos foi se revelando como um ateu, um não crente na existência de Deus como a igreja o pinta, isso fará dele uma pessoa errada para relatar a biografia de Jesus Cristo? De maneira nenhuma, fugindo à cátedra pomposa dos épicos cristão como Os Dez Mandamentos ou a "recente" obra de Mel Gibson, Paixão de Cristo, Pasolini cria uma obra que tem tanto de humana como potencialmente irónica.
Durante a sua projecção no festival de Veneza, foram lançados tomates e Pasolini foi assobiado; com calma e prudência ele lidou com isso e o seu discurso esclarecedor acabou por lhe valer o prémio do júri, mas afinal o que pretende este autor italiano com uma obra cristã? Bem com o cristianismo ele não pretende absolutamente nada e a partir do seu ateísmo é que mora a verdadeira arma do seu filme, a sua contemporaneidade, Cristo surge não como filho de Deus mas sim como um sábio, um homem deslocado com os ideais do época, um homem com pulso.
Um mais que assumido anti-épico, Il Vangelo Secondo Matteo, desenrola-se de uma forma austera compondo-se com especial ênfase na expressão característica dos habitantes da época; interpretados maioritariamente por actores não profissionais, este festival expressionista vem ao encontro da humanidade límpida que Pasolini tenta transparecer; sem perder a sua corrente demagógica, nesta obra a humanidade suplanta a divindade.
Em contraste aos paquidérmicos efeitos visuais de DeMille para representar a santidade, os milagres e o inexplicável são sempre retratados com um ligeiro ar a indiferença e uma certa falta de importância, exemplos: tanto o anjo como o diabo aparecem e desaparecem sem deixar rasto ou provas de que existiram, e a sua duração é mínima, Deus resume-se uma curta cena em voice over sobre um trabalho de "zoom ins e outs"; não só para mais uma vez reforçar os valores humanos é que Pasolini se revela modesto nestas partes do filme, mas também para ao invés de engrandecer o ambiente apenas metaforizar os planos envolvidos, revelando a verdadeira e correcta leitura destas ditas aparições.
De uma forma um tanto irreverente como cresce, Pasolini nunca desrespeita nem foge à sua missão em contar a biografia de um homem que existiu e mudou o mundo para sempre.
Ao desprender-se da espiritualidade e com uma certa cor de irreverência, Pasolini consegue mais uma vez ilustrar o "milagre" e a santidade de forma sem precedentes. Jesus como um homem, com um discurso retórico, com raiva sem incertezas: um homem transcendente que pensou e agiu; Pasolini não quis ficar atrás e a sua obra transcende qualquer devaneio cristão como o verdadeiro retrato de Cristo.
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