A segunda obra da trilogia João de Deus, que se segue a Recordações da Casa Amarela, segue mais uma vez as peripécias do infame protagonista desta vez gerente de uma gelataria denominada "Paraíso do Gelado". Fora de horas João de Deus colecciona pentelhos femininos no seu "Livro dos Pensamentos", e inventa novas formas de criar sabores "requintados" para as suas criações. Judite, patroa do estabelecimento, sonha fundir o Paraíso com uma empresa francesa.
João de Deus frequentemente dava um banho de leite às suas meninas de forma a utiliza-lo nos seus gelados, o criador até apreciava que as suas queridas fizessem as suas necessidades durante o processo de forma a intensificar o sabor do gelado. As raparigas soltavam puns em cima dos ovos de forma a perfumar o alimento.
João César Monteiro caminha vagarosamente, durante 162 minutos, como lhe bem é reconhecido; o autor português recorre mais uma vez aos longos planos de sequência.
O filme é assumidamente uma obra de difícil visualização, já que César Monteiro parte do princípio que tudo que ele cria é a obra da liberdade possível no mundo da cinematografia, tornando a Comédia de Deus numa das obras mais "radicais" que eu alguma vez visualizei. Monteiro viria a levar ao extremo este seu princípio-força em 2000, aquando a direcção de Branca de Neve.
O autor português é mais uma vez, realizador, argumentista e protagonista do seu filme...mas será difícil conseguir catalogar a essência das suas funções, já que o autor "meramente" cria um mundo só dele que aceite de livre vontade todos os seus genuínos impulsos obsessivos retratados pela persona de João de Deus. A autenticidade da sua criação foi sempre o ponto forte do irreverente de Figueira da Foz.
O filme é banhado numa típica comédia corrompida pelo pretensiosismo, já que sempre com a sua tão caricata postura céptica de fala culta desafia e ridiculariza todas as crenças e princípios, sobretudo religiosos, de um cinismo atroz.
A extravagância e forma libertina de se exprimir, fazem de João César Monteiro, um Bocage do cinema contemporâneo. A blasfémia é o nome do meio do autor português já que este refere sempre que possível figuras religiosas de forma a ironicamente desmantela-las .
Impassível e cheio de modos aristocráticos, o emblemático realizador e o seu alter-ego desafiam a moral cristã, em especial a católica. As suas obras são de impossível categorização e estão fora de qualquer tipo de análise. João César Monteiro é uma excepção! Ele é a prova viva de que o cinema pode ser a liberdade de expressão e diversidade ao mesmo tempo que reflexão profunda.
O último homem que tirou o máximo proveito do que o cinema pode dar, sempre à sua maneira... E Comédia de Deus, é um belissimo "conto de fadas" com um cheiro único deste autor. Portugal tem as suas pérolas.
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